top of page

Hoje, às nove da manhã num autocarro lotado da Carris, um homem ameaçou violar-me

Hoje, às nove da manhã num autocarro lotado da Carris, um homem ameaçou violar-me. Este texto, que começou por ser uma mensagem de desabafo e frustração para uma amiga, rapidamente se tornou numa outra coisa, antes mesmo de eu dar conta. É engraçado como, às vezes, a memória trabalha não para curar, mas para embravecer.


Conheço bem a violência machista, diria até que somos amigas de longa data. Conheço-a como mulher, antes como menina, que foi atirada para este mundo desprotegida das profundas desigualdades que caracterizam a nossa experiência e que tantas vezes se manifestam em invasões contra os nossos corpos. Conheço-a como militante e como trabalhadora, cujo dia-a-dia muito consiste em avançar na causa emancipatória das mulheres e na luta pela efetivação dos nossos direitos consagrados. Hoje, no entanto, quando um homem de cinquenta e poucos anos me olhou do outro lado do autocarro, com a mesma expressão de desprezo e de soberba que reconheço de um punhado de experiências anteriores, senti-me como se tivesse nove anos - a idade que tinha quando, pela primeira vez, senti sobre mim o olhar sujo e predatório de um homem adulto.


Nem há dois minutos tínhamos passado o Terreiro do Paço quando ele entra, sem máscara, autocarro a dentro, com a pujança e a postura típica do homem que sabe que o mundo foi edificado para lhe pertencer, ainda que ele seja pouco mais do que miseravelmente vulgar. Uma jovem mulher, pouco mais velha do que eu, pede-lhe que coloque a máscara - é claro que, para o homem-dono-de-tudo, isso bastou e sobrou para justificar a gritaria que se seguiu. Uma onda de insultos que pareciam nunca mais acabar, dirigidos à mulher, sobre o seu corpo, a sua aparência, a cor do seu cabelo e até o timbre da sua voz. Naturalmente, o que mais há para criticar numa mulher que o desafia senão o seu aspeto? Afinal, somos pouco mais do que isso para o homem-dono-de-tudo. É importante relembrar que este é um autocarro lotado em hora de ponta: dezenas de homens, mulheres e crianças assistiram a tudo e ninguém, com a exceção de mim e de uma outra jovem mulher - disseram seja o que for. Pedimos-lhe que parasse, que tivesse respeito não só pela mulher que tão casualmente ofendia mas por todas as pessoas presentes, que tivesse em consideração a seriedade da pandemia e que respeitasse as regras em vigor. Uma acesa troca de palavras que não terá durado mais do que dez minutos: as duas mulheres visadas saíram em paragens subsequentes e sobrei apenas eu.


Ingênua, achei que se ficasse calada tempo suficiente, que se não respondesse às suas provocações e acusações, ele eventualmente pararia. Na verdade, o silêncio dos passageiros provou-lhe justamente o oposto: que ele era livre para dizer tudo o que quisesse, que para ele não existiam consequências. E ele disse-o: que eu era uma miúda insolente, que se fosse dele nunca me permitiria sair vestida naquele estado, que me estava a “pôr a jeito” e, quando eu achava que não podia piorar, quando ficar calada exigia de mim todas as forças que tinha, ele disse o impensável. Firmemente focado em mim, com o mesmo olhar desleixado, sujo e nauseante com que tinha berrado insultos à mulher antes de mim, disse que, se não estivéssemos num autocarro, me violaria, para me ensinar uma lição.


Tinha nove anos, outra vez. Não sabia nada sobre violência machista, sobre leis ou sobre auto-defesa. Estava completamente sozinha, rodeada de dezenas de pessoas estoicamente caladas, que ouviram o mesmo que eu ouvira e que finjiam olhar distraidamente pelas janelas. Parece-me agora que aquele autocarro era um prisma, visto pelas lentes de uma lupa, representativo de uma sociedade inteira: que assiste, naquele que pode apenas ser descrito como o mais criminoso dos silêncios, serenamente, às violências contra nós cometidas.


Eu tenho sorte. Os anos trouxeram-me uma rede de mulheres maravilhosas com quem partilhar as dores e a luta, e delas sei nunca receber o silêncio. Não sei se as outras duas jovens verbalmente violentadas por aquele homem poderão dizer o mesmo: desejo-lhes profundamente que sim.




11 de agosto de 2021

Presidente da Liga Feminista do Porto


651 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

A ordem dos médicos e o fantasma da violência obstétrica

“Às 40 semanas, toque vaginal bem doloroso sem dó nem piedade, (o médico obstetra) ameaçou, quase agressivo, que se quisesse tentar parto normal que ia correr mal porque o bebé era “gigante'”. Marcou

bottom of page