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MATERNIDADE COMPULSÓRIA

Quando dizemos que a nossa opressão é tantas vezes opressão pela força reprodutiva, ou seja, somos oprimidas pela nossa capacidade de parir e, portanto, de alimentar a máquina capitalista na sua busca incansável por mão-de-obra para explorar, estamos também a falar da forma inconsciente como essa opressão toma lugar.


A superestrutura, portanto, o plano das ideias, das instituições e da cultura onde somos criadas e violentamente socializadas, tornou inseparável o conceito da mulher do conceito da mãe. Como comunistas, entendemos que a infraestrutura, ou seja, a base económica da sociedade, as formas de produção, as relações de produção e as relações de trabalho, definem a superestrutura: que é nada mais do que a projeção das estratégias dos grupos dominantes para a consolidação e perpetuação do seu domínio sobre os oprimidos.


Assim, o consenso cultural é de que uma mulher que não é mãe é uma mulher incompleta porque o controlo sobre a força reprodutiva da mulher é indispensável ao sistema. Ser mãe é, portanto, o fim e o objetivo de qualquer mulher, o seu mais alto plano de existência, uma experiência angelical que todas nós ansiamos por alcançar - mais do que uma imposição forçada no sentido violento (apesar de tantas vezes e para tantas mulheres no mundo o ser, também) é sobretudo um produto da nossa socialização.


Maternidade compulsória: subjetiva e objetiva


De uma forma objetiva e de uma forma subjetiva, a todas as mulheres lhes é imposta a maternidade. De forma subjetiva, através da socialização; e de forma objetiva, através da inacessibilidade de mecanismos que impeçam a gravidez.


Meninas brincam com bonecas. É possivelmente o primeiro brinquedo que recebemos em criança. Pouquíssimo tempo depois de nascermos, a primeira relação funcional fora da família nuclear é entre a menina e a sua boneca, a menina-mãe e a sua boneca-filha.


Toda o processo de socialização de uma menina passa pela necessidade incondicional de criar e cuidar. O conceito de “relógio biológico”, que só existe para mulheres, é nada mais do que o deadline do patriarcado a relembrar cada mulher que ela existe para uma função e uma função apenas, e está na hora de cumpri-la.


A mulher não existe pela finalidade da sua própria existência, como ser completo em si mesmo: existe como incubadora, à espera de completar o propósito da sua vida através da gravidez. Mesmo uma mulher solteira adulta, ou uma mulher sem capacidade reprodutiva, será pressionada a, quanto mais não seja, adotar: uma vida inteira de doutrinação para que ela cuide e ame incondicionalmente outro ser humano não passam em branco para nenhuma mulher. E ela será levada a acreditar que toda a mulher sem filhos possui um vazio existencial, uma vida sem propósito, uma velhice infeliz e solitária.


De forma objetiva, quando feministas afirmam o poder revolucionário dos métodos contraceptivos, tendo em atenção que a sua normalização e acessibilidade em nenhum momento se tornou lugar comum para as mulheres da classe trabalhadora, o que realmente estamos a defender é a validade revolucionária de libertar mulheres do peso de uma maternidade que lhes é imposta.


Apesar dos avanços significativos que isto teve para muitas mulheres, a mulher trabalhadora é continuamente afastada do uso de métodos contraceptivos, quer seja pelo valor de mercado ou pela desinformação crónica. A armadilha do patriarcado é manter a mulher pobre explorada, afastada da educação, presa a situações familiares de violência machista através da existência dos filhos, pela necessidade da sua proteção, porque em primeira instância a opção do controlo reprodutivo - escolher quando se quer e se se quer a gestação - lhe foi impossibilitada



O que é a escolha?


A análise que fazemos da realidade termina invariavelmente com o questionamento da escolha livre. Até que ponto podemos afirmar que uma mulher que vive na sociedade capitalista patriarcal alguma vez escolhe livremente ser mãe?


A negação de corpos femininos à procriação tem caráter político: uma mulher que escolhe não ser mãe está ativamente a colocar em causa a dominação patriarcal. Isso não implica que a nossa militância feminista seja anti-maternidade ou pró-movimentos individualistas (não subscrevemos qualquer teoria que defenda que atitudes individuais associadas ao estilo de vida possam implicar mudanças efetivas para o sistema que nos oprime), mas que esta militância deve ser capaz de analisar as condições sob as quais as mulheres decidem optar pela maternidade, tantas vezes violentamente forçadas, e a forma como a maternidade imposta alimentou a acumulação de riqueza e a criação de nações.


Foi o trabalho reprodutivo forçado de meninas um dos grandes responsáveis pela explosão demográfica do último século. Mulheres e meninas em países colonizados nos últimos 500 anos, cujos corpos foram violentados e violados, foram o motor da modernização e industrialização de países, mães de gerações de mão-de-obra forçada e escravizada no Novo Mundo. Violar meninas para reprodução forçosa de mão-de-obra alimentou indústrias, a geração do PIB e a concentração de renda, propriedades e terras nas mãos da elite branca e masculina.


Diminuir mulheres a incubadoras é o aparelho capitalista-patriarcal a funcionar a todo o vapor.

Exige-se o acesso a métodos contraceptivos para todas as mulheres e homens trans.

Para atingir a nossa libertação, nomeadamente dos processos de socialização violenta de que depende o funcionamento do sistema capitalista, é preciso uma mudança total das relações de produção através da revolução socialista.

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