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Em 1992, foi publicada uma coletânea de essays da autoria de Diana Russel denominada “Femicide: Politics of Women Killing”. O termo é cunhado e, desde então, o femicídio tem sido o objeto de luta de milhares de mulheres em todo o mundo. A verdade inalienável é que a forma como a sociedade capitalista e patriarcal mata mulheres difere categoricamente da concepção abrangente de um homicídio. Uma mulher que é assassinada pela mão de um parceiro que a considerava sua propriedade é, talvez, um caso isolado - porém, milhares de mulheres que são mortas sob essa mesma circunstância em todo o mundo é uma epidemia.

 

A violência contra a mulher, consequência apenas do facto de ela ser mulher, é uma realidade histórica e tem um caráter estrutural. Luciana Gebrim (2014) defende que esta violência é perpetuada devido à posição de subordinação que a mulher ocupa na ordem sociocultural capitalista e patriarcal. Tal relação de poder, baseada em padrões de dominação, de controlo e opressão, concluem na discriminação, no individualismo, na exploração e na criação de estereótipos, os quais são transmitidos de uma geração para outra e reproduzidos tanto no âmbito público (governo, política, religião, escolas, meios de comunicação), como no âmbito privado (família, parentes, amigos, relação interpessoais).

 

A partir de condições históricas, são naturalizadas formas de discriminação contra a mulher e geradas práticas sociais que permitem ataques contra a sua integridade, desenvolvimento, saúde, liberdade e, em última instância, contra a sua vida. Matamos mulheres porque elas nos pertencem e elas pertencem-nos porque o seu corpo é público - e o seu corpo é público porque é corpo de mulher. Matamos mulheres porque elas são mulheres.

Femicídio: Origens e Reivindicações

A pandemia, que é o assassinato

em massa de mulheres, dura há tanto tempo quanto dura este sistema

O coletivo francês “Collectif Féminicides par compagnons ou ex” foi criado em 2016, em França, de forma a retomar o trabalho que uma companheira francesa tinha já iniciado em 2012: estabelecer um meio de contagem dos femicídios em tempo real. O seu propósito era tornar pública e inescapável a situação de emergência em que viviam as mulheres francesas. Com esse fim, criaram um mapa digital interativo, onde o usuário é confrontado com diferentes pontos assinalados geograficamente, cada um representativo de uma mulher, demarcados pela localidade em que cada crime aconteceu. Cada ponto é acompanhado com uma caixa de texto com informações sobre a vítima, o crime, o agressor e o processo judicial em curso. As nossas companheiras francesas consideram que os números fornecidos pelo Ministério Público francês não representam a realidade e, de forma a estender também uma crítica à imprensa pela forma leviana e sensacionalista de tratar os assassinatos sistemáticos de mulheres, iniciaram o projeto como um objeto de luto e de luta. 

 

Uma iniciativa similar surgiu em 2018 no México. Maria Salguero, “que não podia ficar de braços cruzados em frente a tal barbaridade” criou o “Mapa dos Femicidios en Mexico”, permitindo ilustrar os inúmeros casos de femicídios no país e a história das mulheres assassinadas desde 2016.  

 

Cada ponto no mapa, cada percentagem na estatística, cada manchete sensacionalista dos jornais - é uma de nós. Que foi morta por ser mulher, numa cidade ou numa vila mais ou menos perto de nós, cujo agressor é frequentemente endeusado e a sua imagem perfeitamente ornamentada pelos meios de comunicação social.

 

Assim, a Liga Feminista do Porto, que passou os últimos dez meses a reunir uma coletânea de todas as notícias que divulgavam assassinatos ou tentativas de assassinato de mulheres em circunstâncias congruentes com a tipificação do femicídio, lança agora o Mapa dos Femicídios por (ex) Parceiro em Portugal em 2020.

O Dia Internacional da Mulher Trabalhadora, assinalado todos os anos a 8 de março, deve ser para o movimento feminista uma ocasião de luta - em oposição às celebrações simbólicas que durante tantos anos cooptaram esta data. Lembramos as mulheres proletárias russas que, em 1917, protestaram contra a fome, o desemprego e a deterioração das condições de vida para a sua classe. É sobre este legado que assinalamos este 8 de Março, com as mesmas exigências de há 104 anos: pão, terra, trabalho e liberdade. 

 

O que a crise pandémica representou para a mulher no último ano, sobretudo para a mulher da classe trabalhadora, é de uma violência feroz. Foram elas quem mais sofreram e continuam a sofrer com esta crise, foram elas quem mais foram dispensadas e/ou empurradas para o lay-off - só entre março e abril de 2020, 9 em cada 10 empregos perdidos eram ocupados por mulheres. Mas foi também em 2020 que a ofensiva proxeneta ganhou força, colocando em causa proteções e avanços da luta feminista de outros tempos. São as mulheres pobres, imigrantes e frequentemente racializadas que são empurradas para o sistema prostitucional: números que aumentam categoricamente.

De uma violência perversa, a indústria sexual, na qual se inclui também a pornografia, representa a instituicionalização da opressão, da humilhação e da coisificação da mulher. Um corpo que é sempre público - e se a pornografia e a prostituição ensinam aos homens como devem tratar as suas companheiras, pouco ou nada sobra nas relações de intimidade interpessoais senão algum nível de violência. Para muitas de nós, essa violência é frequentemente fatal.

Neste 8 de março, levantamos como as nossas três bandeiras: a luta contra a indústria sexual - a pornografia e o sistema prostitucional, e a luta contra o femicídio

MAPA DOS FEMICÍDIOS POR (EX) PARCEIRO EM PORTUGAL EM 2020

8 DE MARÇO - DIA INTERNACIONAL DA MULHER TRABALHADORA

Neste 8 de março, levantamos como as nossas três bandeiras: a luta contra a indústria sexual - a pornografia e o sistema prostitucional, e a luta contra o femícidio

DEDICAMOS ESTE PROJETO ÀS 19 MULHERES VÍTIMAS DE FEMICÍDIO EM 2020

O mapeamento resulta do levantamento de notícias publicadas na imprensa nacional. Desde a fundação da Liga Feminista do Porto que procuramos manter-nos particularmente atentas a notícias referentes a femicídios em solo português, tendo divulgado alguns dos casos mais mediáticos através da nossa plataforma de Instagram

 

Confirmamos os nossos dados com a infografia “Dados preliminares sobre as Mulheres Assassinadas em Portugal; 1 janeiro a 15 de novembro de 2020” desenvolvida pelo Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) da UMAR. Aproveitamos também o trabalho desenvolvido pelo Correio da Manhã, de forma a cruzar dados e confirmar as notícias existentes sobre mulheres vítimas de femicídio.

 

No processo de levantamento de femicídios e tentativas de femicídio definimos o que entendemos por cada conceito. Assim, doravante, entendem-se como femicídio as mortes intencionais de mulheres em que no teor da notícia se perceba que o óbito decorreu como resultado da violência em relações de intimidade.

 

Consideramos como tentativa de femicídio o caso em que o crime foi tipificado pelos tribunais como tentativa de homicídio. Nos casos em que as agressões poderiam ter resultado na consumação do crime de homicídio mas que não foram assim tipificadas, classificamos como “violência extrema”.

 

Na categoria “agressor” colocamos a relação que o agressor tinha ou tem com a vítima. Para indicarmos o “estado atual do agressor” usamos a informação disponível no momento de consulta das notícias. Assim sendo, algumas informações podem estar desatualizadas. Na escrita das “outras informações” indicamos o agressor como sujeito da frase, colocando o foco no agressor e não na vítima. Para exposição no mapa, selecionamos apenas informações que salientam o caráter violento e possessivo das agressões e dos assassinatos.

metodologia

O femicídio é o expoente máximo da opressão a que todas as mulheres estão sujeitas. Nenhuma de nós estará segura enquanto formos entendidas como propriedade pública, enquanto os nossos corpos e existências sejam lidos como da propriedade de terceiros.

Mesmo quando não somos assassinadas, quando o patriarcado, que ensina os homens a matar-nos, não materializa a sua maior violência contra nós, muitas de nós são obrigadas a viver o resto da nossa vida com o trauma inestimável de décadas de abusos e violências. 

 

Os agressores sexuais e femicídas são, na sua maioria, pessoas com quem as vítimas mantêm ou são obrigadas a manter relações de intimidade. De acordo com a UMAR, em 10 dos 16 femicídios registados entre 1 de janeiro e 15 de novembro de 2020, a vítima e o agressor tinham filhos em comum. Durante este período, 21 crianças e jovens ficaram órfãos de um ou ambos os progenitores devido a crimes de femicídio.

 

Vários países na América Latina tipificaram já a figura do femicídio nos seus códigos penais. A incorporação de um tipo penal específico contribuirá em Portugal, como contribuiu lá fora, para a proteção de uma nova geração de meninas e mulheres e para atingir transformações culturais importantes. Nomeadamente, para reunir mais conhecimento sobre as vítimas e os seus agressores, sobre os contextos das agressões e os crimes denunciados com maior frequência, de forma a compreender a real magnitude desta crise. Mais ainda, isto permitirá garantir o acesso à justiça e à possibilidade de que o Estado adote, finalmente, políticas públicas eficazes para a prevenção e a erradicação da violência contra as mulheres.

A nossa crítica estende-se ainda a muitos dos meios de comunicação social que reportam estes casos e que frequentemente criam imagens embelezadas dos agressores, branqueando os seus discursos, minimazando o seu papel enquanto agentes ativos da violência e optando por descrições floreadas e cuidadosamente criadas do homem bondoso e do crime inesperado: do qual é exemplo o assassinato de Beatriz Lebre. 

 

O lugar mais perigoso para as mulheres pode ser a sua própria casa. Novas ou idosas, os nossos corpos não estão em segurança, nem em casa nem na rua. Estamos em luta neste 8 de março e continuaremos em luta depois dele.

 

Exigimos o financiamento público de casas abrigo para mulheres violentadas, medidas de coação mais duras para os agressores, salários dignos, pleno emprego, habitação pública e de qualidade, acesso ao ensino e à saúde gratuitamente - assim, exigimos existências dignas para todas as mulheres, para que reúnam as condições materiais necessárias e não se vejam presas aos seus abusadores por dependência financeira. 

 

Exigimos a tipificação do femicídio por todas as mulheres brutalmente assassinadas pela violência machista que entende os nossos corpos como mercadorias de livre acesso. Esperamos que o Mapa dos Femicídios em Portugal seja uma lembrança em constante atualização de todas as companheiras que perdemos, e em nome das quais a nossa luta nunca cessará.

reivindicações

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